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16 Days: A dor dupla do feminicídio

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16 Days: A dor dupla do feminicídio

O desejo de Sabina Filipe Manuel, de 21 anos, de passar as festas de transição do ano 2019 para 2020, junto da sua família em Lichinga, província de Niassa, terminou em tragédia. Ela foi assassinada por malfeitores em circunstâncias desconhecidas quando estava prestes a seguir viagem de comboio de Cuamba para Lichinga vinda de Nampula onde frequentava o ensino superior. O seu corpo foi encontrado dez dias após o desaparecimento nas margens do rio Muanda, em Cuamba, sem roupas, em avançado estado de decomposição, com queimaduras e sinais que sugerem violação sexual, segundo contam familiares. O principal suspeito foi detido e depois solto antes do julgamento.

Até hoje, a família da Sabina Manuel luta não só pela justiça, mas também pela transladação dos restos mortais da malograda sepultados nas proximidades do rio, por ordens das autoridades, para que tenham o devido descanso na sua terra natal Lichinga, onde reside o resto da família. A lei determina que só depois de cinco anos de sepultamento os restos mortais de um ente querido podem ser transladados.

Transcorridos cinco anos e sem nenhuma resposta dos órgãos de justiça nacionais, Sabina Manuel entra nas estatísticas de feminicídio, um fenómeno que tende a ganhar mais espaço e com proporções cada vez mais preocupantes no país, visto que os promotores continuam livres e impunes, havendo casos arquivados pelo Ministério Público por serem contra desconhecidos. Igualmente, há outros como este em que os criminosos são soltos sem os devidos esclarecimentos às famílias, sugerindo esquemas de corrupção.

Entre Janeiro e Setembro de 2024, o Observatório das Mulheres registou 43 casos de feminicídio e 42 violações sexuais. Dados da Procuradoria-Geral da República (PGR), apontam que uma mulher é assassinada, em média, a cada dois dias no país.

“Esse é um assunto muito sensível para nós, mas parece que a justiça não está a levar a sério. É como se estivesse a brincar connosco”, afirmou Felisbela Manuel, irmã da vítima, em declarações ao SAVANA.

O tempo passa, mas o desejo de ver a justiça feita prevalece. Os familiares da vítima contam que já estiveram duas vezes no Tribunal Distrital de Cuamba. Da primeira vez, o julgamento do caso foi adiado e, da segunda, o juiz informou que o suspeito anteriormente detido havia sido libertado das celas, sem que a família da vítima tivesse sido informada.

“Já esperamos durante cinco anos e nada se faz. Parece que é mesmo para esquecermos. E as pessoas que fizeram isso ficam impunes”, disse Felisbela, com a voz embargada.

Sabina era estudante do Instituto Superior de Gestão e Comércio de Nampula, frequentava o segundo ano de licenciatura em Gestão Ambiental, residia em Lichinga na província de Niassa.

Regresso fatal

Ao final de cada ano académico Sabina Manuel deixava Nampula e rumava para a sua terra natal, Lichinga, para desfrutar das férias e festas do natal e final do ano junto da família.

Devido à realização de exames de recorrência em algumas cadeiras, no final 2019, Sabina não foi a tempo de regressar a casa para celebrar o dia 25 de Dezembro, data consagrada como dia da família, mas garantiu que a família podia contar com ela nas festas de transição do ano.

No dia 27 de Dezembro de 2019, Sabina terminou o último exame ao meio-dia e depois seguiu viagem rumo à terra natal. Devido à hora, que já estava avançada, apanhou um transporte público de Nampula a Cuamba, de onde esperava, no dia seguinte, seguir de comboio a Lichinga. Era um percurso que conhecia bem, feito muitas vezes durante os anos de estudos.

Por volta das 21 horas, ligou para a mãe informando que a viagem até Cuamba correu muito bem, só podia seguir até Lichinga no dia seguinte na primeira carreira do comboio. Por questões de segurança, iria pernoitar na estação ferroviária juntamente com outros passageiros, mas ninguém imaginava que esta seria a última vez que a mãe ouviu a voz de Sabina.

No dia seguinte, o telefone da Sabina tocava, mas ninguém atendia. Com o avançar das horas sem nenhuma correspondência da estudante universitária, a preocupação tomou conta da família. A jovem mantinha sempre contacto com a família, sobretudo quando viajava. A família foi se posicionar na estação ferroviária local para receber a Sabina. O comboio que transporta passageiros de Cuamba a Lichinga apita na estação, todos desembarcam, menos a Sabina. O pânico e aflição ganham espaço, vários passageiros foram questionados sem nenhuma resposta plausível.

O irmão mais velho da Sabina decide viajar para Cuamba para fazer buscas e no décimo dia de buscas, a 6 de Janeiro de 2020, chegou a notícia que ninguém queria ouvir. Alguém partilhou nas redes sociais que um corpo tinha sido encontrado nas margens do rio Muanda, em Cuamba. A Polícia da República de Moçambique (PRM) e o Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) deslocaram-se ao local.

O corpo já estava em avançado estado de decomposição, o irmão da vítima assumiu a responsabilidade de confirmar a identidade. Era Sabina.

“Já estava em estado avançado de decomposição, não havia condições para a trasladação nem para a colocação na morgue. Simplesmente, correram e sepultaram o corpo nas margens do rio, sem sequer um velório”, conta Felisbela, lamentando a decisão das autoridades, que alegaram não haver condições para levar o corpo para Lichinga.

Sabina foi sepultada nas margens do rio Muanda, facto que não tem dado paz à sua família que alega que o rio transborda durante a época chuvosa, ameaçando levar tudo que encontra pela frente e, de modo particular, a campa e os restos mortais. Para minimizar esse impacto, a campa foi vedada com um pequeno muro sempre sujeito a uma pequena manutenção.

A Justiça que nunca chega

O processo n.º 80/2021, da 2.ª Secção Criminal da Província do Niassa deveria ter trazido respostas e justiça à família. Em vez disso, tornou-se símbolo de um sistema que falha quando mais precisa, afirma a irmã da vítima.

Lázaro Nhampossa foi constituído principal suspeito pelo facto de ter sido encontrado na posse do telefone da malograda. Foi detido, mas acabou sendo libertado em circunstâncias desconhecidas sem que a família da vítima fosse informada.

“É complicado”, desabafa Felisbela. “Será que às autoridades já sabem o que aconteceu e não querem que a família tome conhecimento?” questiona a irmã da Sabina.

O SAVANA soube que a 2 de Outubro de 2025, a família voltou ao tribunal, mas o Ministério Público não fez o devido trabalho durante a instrução preparatória do caso, testemunhas imprescindíveis não foram ouvidas na acusação e muito menos houve algum mandado de busca e captura do principal suspeito após a sua suposta fuga das celas. Reinava o sentimento de que durante os cinco anos o processo não foi mexido.

Transladação

Depois de cinco anos, o prazo legal exigido, a família finalmente iniciou os trâmites legais para trasladar os restos mortais de Sabina para um cemitério em Lichinga. É um processo burocrático complexo que exige autorizações do Conselho Municipal e da Procuradoria Provincial.

“O nosso desejo é transferir os restos para aqui, onde a nossa mãe vive e os outros irmãos também estão”, explica Felisbela.

Observatório alerta: impunidade alimenta epidemia

Quitéria Guirengane, secretária executiva do Observatório das Mulheres, apontou que a impunidade e a lentidão judicial estão a alimentar uma escalada alarmante de feminicídios no país.

“O número de assassinatos que aparece na média não é acompanhado proporcionalmente por casos divulgados pelos tribunais que mostram julgamentos ou sentenças. Sem informação sobre desfechos, há uma mensagem negativa que retroalimenta o feminicídio”, explicou Guiringane.

A activista dos direitos humanos destacou que a frequente menção a “autores desconhecidos” nas notícias transmite a ideia de que é possível escapar impune.

“Se houvesse divulgação de que os desconhecidos têm agora rosto, foram condenados e sentenciados, haveria mensagem de que não vale a pena cometer o crime.”

A organização identificou três principais obstáculos: a morosidade processual, o défice na produção de provas e sentenças inadequadas. A falta de capacidade para realizar testes de ADN resulta em absolvições por insuficiência de provas mesmo quando há evidências médico-legais.

Guirengane alertou que a falha do sistema judicial está a criar condições para o retorno aos linchamentos. “Comunidades dizem-nos que indivíduos presos por assassinato há duas semanas já estão soltos. Perguntam se não devem fazer justiça pelas próprias mãos. Corremos o risco de perder controlo se não dermos respostas que confortem o coração das famílias das vítimas.”

O Observatório defende uma análise profunda do quadro legal actual e a consideração de legislação específica sobre feminicídio, inspirada em modelos internacionais, como o caso do Brasil. A solução exige uma resposta integrada que inclua programas de reabilitação para agressores, apoio psicossocial às vítimas e campanhas de consciencialização.

A raiva que não passa e o ciclo que não fecha

Para a psicóloga Quitéria Mabasso, com 25 anos de experiência, o caso de Sabina representa um fenómeno devastador: uma família impedida de fazer o luto apropriado.

Segundo Mabasso, o processo de luto tem cinco fases essenciais: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. A família de Sabina permanece estagnada na segunda fase, pois afirma que, sempre que vai ao local onde Sabina está sepultada, o trauma regressa.

A psicóloga entende que, enquanto persistir o sentimento de que há mais a fazer, de que se podia fazer mais para responsabilizar o único suspeito ou de que alguém está a atrapalhar porque o processo não foi bem conduzido, tudo isso impedirá a família de avançar.

A impossibilidade de trasladar o corpo tem um peso psicológico imenso, afirma Mabasso. “Se a crença da família é de que os seus entes queridos repousam num certo cemitério, o que é realidade em Moçambique, enquanto não enterrarem o corpo no ritual típico da família, nunca vão sentir que essa pessoa descansou em paz.”

Enquanto a justiça demora a resolver este e outros casos, a psicóloga Mabasso é categórica ao afirmar que a resolução judicial do caso é parte fundamental da cura psicológica.

“A pessoa é encontrada, julgada e condenada. Até podemos não achar justa a pena, mas vai acontecer tudo aquilo que é esperado, que é possível, para que possamos passar para outra fase do luto.”

A cada adiamento do julgamento, a cada falha processual, a cada muro que Felisbela constrói às margens do rio Muanda, a ferida reabre. O luto não é apenas psicológico, mas também social e cultural, estando profundamente ligado à sensação de que, quando tarda, a justiça não só nega o direito legal, como também o direito humano de fazer as pazes com a morte, conclui a psicóloga.

Escrito por Cleto Duarte. Este artigo, publicado originalmente pela SAVANA, faz parte do Programa de Capacitação em Paridade Mediá e é republicado como parte da série do programa.


 

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